Em seu gabinete, na
cobertura do prédio anexo do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar
Mendes despacha cercado de fotos com jogadores e...
Em
seu gabinete, na cobertura do prédio anexo do Supremo Tribunal Federal (STF), o
ministro Gilmar Mendes despacha cercado de fotos com jogadores e personalidades
do futebol brasileiro. Os livros jurídicos dividem espaço nas paredes com
bolas, troféus, medalhas e dezenas de camisetas de times autografadas.
“Pelezista” declarado, o ministro também ostenta diversos quadros com fotos
tiradas ao lado do eterno Camisa 10 da seleção brasileira.
Decano do STF, com 22 anos de
toga, Mendes recebeu as equipes da Agência Brasil e
da TV
Brasil nesse espaço depois das 20h de uma terça-feira.
Ainda terminava seu jantar, na mesma mesa de reuniões usada para o trabalho,
mas não se perturbou ao perceber a entrada de jornalistas e da equipe de
imagem. "Tudo bem, como vai?", cumprimentou, antes de retomar a
refeição.
Pouco avesso a
sorrisos, como de costume, retirou-se para uma sala anexa após o jantar para,
minutos depois, retornar para a entrevista. Sentou-se calmamente na cadeira de
seu gabinete, já sabedor do tema da conversa.
A história acabou por
lhe dar razão, após ser criticado nos primeiros anos de Operação Lava Jato. E
foi assim que discorreu sobre o tema, com a tranquilidade de quem não se
perturbou diante dos mitos e heróis sem capa surgidos durante esse período.
Essas mesmas figuras seriam destronadas com o passar do tempo.
O início da operação completa
dez anos neste domingo, dia 17 de março e, para o ministro, o balanço é
“marcadamente negativo”. Em sua opinião, a única lição aprendida pelo país foi
a de não combater o crime praticando outros crimes. Gilmar Mendes afirma ter
sido ele a primeira voz a se levantar contra os abusos da operação, como as
prisões alongadas em Curitiba e as delações inconsistentes.
O ministro estabelece
uma relação contraditória entre a Lava Jato e as atividades que a operação
buscava combater.
“Na verdade, a Lava Jato terminou como uma verdadeira organização
criminosa, ela envolveu-se em uma série de abusos de autoridades, desvio de
dinheiro, violação de uma série de princípios e tudo isso é de todo lamentável”.
Durante a operação, Gilmar Mendes foi
figura central em decisões importantes para os rumos da Lava Jato. Entre elas,
a que declarou a incompetência da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba e anulou
as ações penais contra Luiz Inácio Lula da Silva. O
magistrado também votou para considerar
o ex-juiz Sergio Moro parcial em processos da operação.
Confira os principais trechos da entrevista:
Agência
Brasil :
Ministro, a Operação Lava Jato completa dez anos no dia 17 de março, o senhor
acha que a Lava Jato foi boa ou ruim para o Brasil? Qual é o saldo?
Gilmar
Mendes : Eu acho que a Lava Jato fez um mal enorme às
instituições. Bem inspirada talvez, no início, ela acabou produzindo uma série
de distorções no sistema jurídico político. Por isso, o meu balanço é marcadamente
negativo. Mas é claro que nós aprendemos da história, inclusive dos fatos
negativos na vida dos povos, na vida das nações. Então, alguém sempre poderá
dizer algo positivo. Nós aprendemos como não fazer determinadas coisas. E,
nesse sentido, se pode até extrair aspectos positivos. O que a gente aprendeu?
Eu diria em uma frase: não se combate o crime cometendo crimes. Na verdade, a
Lava Jato terminou como uma verdadeira organização criminosa, ela envolveu-se
em uma série de abusos de autoridades, desvio de dinheiro, violação de uma
série de princípios e tudo isso é de todo lamentável.
Agência
Brasil :
Hipoteticamente: temos uma suspeita de corrupção no Brasil. Como agir
corretamente, como proceder?
Mendes :
A primeira coisa é não inventar a roda, é fazer aquilo que se tem que fazer,
deixar que as autoridades policiais façam as investigações, que o Ministério
Público faça o seu acompanhamento. Hoje, o país dispõe de uma série de
instrumentos para isso. E não imaginar que nós vamos ter heróis voadores, que
vamos ter pessoas que resolvem com um milagre a questão da corrupção no país. E
fazer as coisas com o devido processo legal. Acho que isso é extremamente
importante. Investigações espetaculares, tonitruantes, a gente tem aí aos
montões e depois nós temos apenas um resto de lixo em anulações, em não há
aproveitamento de provas, como acabou ocorrendo aqui na Lava Jato. Acho que o
que a Lava Jato vai ensinar ao sistema jurídico processual brasileiro é como
não se fazer determinadas coisas e ensinar que nós devemos ser extremamente
cautelosos em relação a essas questões, aos procedimentos jurídicos, para não
produzirmos situações estapafúrdias.
Agência
Brasil :
A punição às empresas e às pessoas foi além da conta?
Mendes :
Tudo o que é excessivo e tudo que é indevido, certamente, é além da conta. Nós
vamos ter que discutir isso agora. Certamente, muitos vão dizer: ‘ah, tem réus
confessos que estão sendo isentados de culpa por conta de falhas processuais’,
mas é assim no Estado de Direito em qualquer lugar. Então, não há nenhuma
surpresa em relação a isso e vamos ter que fazer também um exame caso a caso,
isso não se resolve em um juízo completo, direto. E é isso que nós estamos
fazendo e temos feito, tivemos o processo do Lula e outros. Então, me parece
que nós fomos de uma euforia quase alcoólica a uma depressão, e os dois estados
não são bons. É importante que nós estejamos atentos para fazermos o trabalho
de maneira correta e acho que é isso que nós temos que inculcar nos agentes
policiais, nos agentes de Receita, nos agentes investigadores todos, do
Ministério Público e os próprios juízes.
Agência
Brasil: Muito
antes da Vaza Jato, o senhor já dizia que o STF teria um encontro marcado com a Operação Lava Jato, o que que
havia? O que o senhor ouvia nas audiências com os advogados, qual era a
percepção na época?
Mendes :
Já se disse que o problema do diabo não é que ele seja o diabo, né? É que ele é
velho, ele é experiente. Então, a gente aprende a fazer essas leituras e colhe
também experiências. A primeira coisa que eu vi, acho que foi em 2015, foram as prisões
alongadas de Curitiba. E, claro, os advogados passaram a
dizer que as prisões alongadas eram utilizadas como uma forma de tortura para
obter delações. E delações que muitas vezes se mostraram inconsistentes.
Delações que muitas vezes se transformaram em acordos de leniência, por isso os
questionamentos de agora. Então, nós tivemos toda a essa situação e eu fui
talvez a primeira voz a levantar contra essa situação.
E depois ganhei a convicção
de que não se tratava apenas de uma irregularidade procedimental ou processual
e que na verdade nós estávamos diante de um movimento político, como depois se
revelou no contexto geral: [Sergio] Moro [virou] o ministro da Justiça de
Bolsonaro, Deltan Dallagnol, um ativista político. E a gente também descobriu,
isso é uma coisa bastante peculiar, que o volume
de dinheiro com o qual eles se envolviam também os
estimulou a ter suas próprias empresas ou participar disso. Aí surge a tal
Fundação Dallagnol lá em Curitiba. Aqui em Brasília surge também algo
semelhante com a tal Operação Greenfield. A gente descobre que esses nossos
‘combatentes da corrupção’ gostavam muito de dinheiro, o que é uma contradição
nos próprios termos. O ministro Salomão [Luis Felipe Salomão, corregedor
Nacional de Justiça] está encerrando um trabalho sobre essa questão e diz que
há uma quantia perto de R$ 1 bilhão que não se sabe para onde foi, do dinheiro
que estava depositado na vara em Curitiba. Então, isso precisa ser esclarecido.
Agência
Brasil :
O senhor já disse anteriormente que todo o sistema político e o governo na
época da Lava Jato foram ingênuos. Como o senhor avalia o comportamento do STF
nesse período?
Mendes :
A Operação Lava Jato não era uma operação puramente judicial, policial ou de
investigação administrativa, eles fizeram uma força-tarefa e lograram um apoio
público muito grande, um apoio de mídia. E eu tenho a impressão que esse apoio
de mídia teve também um efeito inibitório sobre o Supremo Tribunal Federal. Eu
acompanhei os primeiros habeas corpus desde 2014, que começaram a chegar,
o ministro Teori [ministro Teori Zavascki, relator da Lava Jato no STF] era o
ministro relator e havia já essa força não só de Moro e de sua equipe, mas
também da Procuradoria-Geral, Janot [Rodrigo Janot, então PGR]. E é capaz que o
Tribunal naquele momento não tenha tido a leitura devida de todas as questões
envolvidas do ponto de vista político, e isso demorou a se consolidar. Tanto é
que quando eu mesmo assumo um papel de mais crítico do sistema fico também um
pouco isolado e a mídia toda dizia: “essa decisão parece contrariar a Lava
Jato”, como se a gente estivesse contrariando Roma ou falando mal do papa.
Então, havia um domínio em relação a isso. E houve até operações que foram
feitas nesse espírito, ainda que não conduzidas pela Lava Jato, por exemplo,
aquela operação do Joesley [Batista, ex-presidente da JBS] vis-à-vis ao
presidente da República Michel Temer em que, obviamente, o que o presidente
disse foi uma coisa, o que foi divulgado foi outra. E isso foi divulgado pela
Globo, portanto em uma combinação certamente do procurador-geral Janot com a
direção da Globo ou setores de mando na instituição. Depois se viu que aquilo
era falso.
Agência
Brasil :
Ministro, se a Vaza Jato não tivesse acontecido, qual teria sido desfecho da
Operação Lava Jato, na sua avaliação?
Mendes :
Eu tenho impressão, por exemplo, que no meu processo, que foi talvez um turning point nessa questão, que foi o processo
do presidente Lula sobre a suspeição ,
eu até disse isso no voto: nós tínhamos uma perspectiva já de afirmação da
suspeição com os elementos existentes nos autos. Acho que teríamos chegado ao
mesmo resultado, mas é inegável que a Vaza Jato mostrou que o rei estava nu.
Mostrou como eram feitos os pastéis e como eles eram malfeitos. Então, tudo
aquilo que nós supúnhamos ou intuíamos foi confirmado.
Agência
Brasil :
Houve desvio, mas também houve muito prejuízo para dezenas de empresas que
foram prejudicadas. Como combater a corrupção sem a derrocada da economia?
Mendes :
Eu acho que esse também é um aprendizado. Naquele momento, me parece que o
Brasil estava vivendo uma fase muito peculiar: o governo Dilma débil, fraco,
vem o governo Temer também acusado, envolto naquelas mesmas circunstâncias. O
sistema político estava no chão, e os procuradores e o próprio Moro eram como
se déspotas esclarecidos, ou nem tanto, podiam fazer o que quisessem. Acho que
é um modelo de difícil reaplicação hoje. Então, dificilmente todas essas
circunstâncias históricas vão se consolidar para uma tal situação. Mas eu me
pergunto se não é o caso de, de fato, nós mudarmos a legislação e eventualmente
separarmos a empresa e pensarmos inclusive em modelos de direito comparado para
eventualmente punirmos os agentes empresariais e separamos a empresa. Há empresas que
empregavam 150 mil pessoas hoje empregam 14, empresas que foram destruídas. E
há também todo um discurso de que isso também se fez atendendo a interesses
internacionais. E nem isso a gente pode negar peremptoriamente.
"Acho
que a Lava Jato fez um mal enorme às instituições", afirmou Mendes em
entrevista à Agência Brasil. "O que a gente aprendeu? Eu diria em uma
frase: não se combate o crime cometendo crimes. Na verdade, a Lava Jato
terminou como uma verdadeira organização criminosa, ela envolveu-se em uma
série de abusos de autoridades, desvio de dinheiro, violação de uma série de
princípios e tudo isso é de todo lamentável".
Agência Brasil
*Colaborou Marcelo Brandão.
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