Barroso: "As diferentes visões de mundo nas sociedades abertas e democráticas fazem parte da vida e é bom que seja assim. Mas não dão a ninguém o direito de torcer a verdade ou negar fatos concretos que todos viram e viveram. A democracia tem lugar para conservadores, liberais e progressistas" - (crédito: Pedro França/Agência CNJ).
A carta do ministro Luís Roberto Barroso é a primeira manifestação do Supremo Tribunal Federal a respeito do anúncio feito por Trump e que culpa justamente a Corte de perseguir o ex-presidente Jair Bolsonaro.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, divulgou, na noite deste domingo (13/7), uma carta em defesa da democracia. No texto, com 109 linhas, Barroso classifica os argumentos do governo de Donald Trump para o tarifaço contra o Brasil de "compreensão imprecisa" dos fatos ocorridos nos últimos anos.
A carta de Barroso é a primeira manifestação do Supremo Tribunal Federal a respeito do anúncio feito por Trump e que culpa justamente a Corte de perseguir o ex-presidente Jair Bolsonaro. O presidente do STF disse, ainda, que diferentes visões de mundo "não dão direito a ninguém de torcer a verdade".
Confira a íntegra da carta do ministro Luís Roberto
Barroso:
EM DEFESA DA
CONSTITUIÇÃO, DA DEMOCRACIA E DA JUSTIÇA.
Por Luís Roberto Barroso
Em
9 de julho último, foram anunciadas sanções que seriam aplicadas ao Brasil, por
um tradicional parceiro comercial, fundadas em compreensão imprecisa dos fatos
ocorridos no país nos últimos anos. Cabia ao Executivo e, particularmente, à
Diplomacia – não ao Judiciário – conduzir as respostas políticas imediatas,
ainda no calor dos acontecimentos.
Passada
a reação inicial, considero de meu dever, como chefe do Poder Judiciário, proceder
à reconstituição serena dos fatos relevantes da história recente do Brasil e,
sobretudo, da atuação do Supremo Tribunal Federal.
As diferentes visões de mundo nas sociedades abertas e democráticas fazem parte da vida e é bom que seja assim. Mas não dão a ninguém o direito de torcer a verdade ou negar fatos concretos que todos viram e viveram. A democracia tem lugar para conservadores, liberais e progressistas. A oposição e a alternância no poder são da essência do regime. Porém, a vida ética deve ser vivida com valores, boa-fé e a busca sincera pela verdade.
Para que cada um forme a sua própria
opinião sobre o que é certo, justo e legítimo, segue uma descrição factual e
objetiva da realidade.
Começando
em 1985, temos 40 anos de estabilidade institucional, com sucessivas eleições
livres e limpas e plenitude das liberdades individuais. Só o que constitui
crime tem sido reprimido. Não se deve desconsiderar a importância dessa
conquista, num país que viveu, ao longo da história, sucessivas quebras da
legalidade constitucional, em épocas diversas.
Essas
rupturas ou tentativas de ruptura institucional incluem, apenas nos últimos 90
anos: a Intentona Comunista de 1935, o golpe do Estado Novo de 1937, a
destituição de Getúlio Vargas em 1945, o contragolpe preventivo do Marechal
Lott em 1955, a destituição de João Goulart em 1964, o Ato Institucional nº 5
em 1968, o impedimento à posse de Pedro Aleixo e a outorga de uma nova
Constituição em 1969, os anos de chumbo até 1973 e o fechamento do Congresso,
por Geisel, em 1977.
Levamos muito tempo para superar os ciclos do atraso. A preservação do Estado democrático de direito tornou-se um dos bens mais preciosos da nossa geração. Mas não foram poucas as ameaças.
Nos últimos anos, a partir de 2019, vivemos
episódios que incluíram: tentativa de atentado terrorista a bomba no aeroporto
de Brasília; tentativa de invasão da sede da Polícia Federal; tentativa de
explosão de bomba no Supremo Tribunal Federal (STF); acusações falsas de fraude
eleitoral na eleição presidencial; mudança de relatório das Forças Armadas que
havia concluído pela ausência de qualquer tipo de fraude nas urnas eletrônicas;
ameaças à vida e à integridade física de Ministros do STF, inclusive com pedido
de impeachment; acampamentos de milhares de pessoas em portas de quartéis
pedindo a deposição do presidente eleito.
E,
de acordo com denúncia do Procurador-Geral da República, uma tentativa de golpe
que incluía plano para assassinar o Presidente da República, o Vice e um
Ministro do Supremo.
Foi
necessário um tribunal independente e atuante para evitar o colapso das
instituições, como ocorreu em vários países do mundo, do Leste Europeu à
América Latina.
As ações penais em curso, por crimes diversos contra o Estado democrático de direito, observam estritamente o devido processo legal, com absoluta transparência em todas as fases do julgamento. Sessões públicas, transmitidas pela televisão, acompanhadas por advogados, pela imprensa e pela sociedade. O julgamento ainda está em curso.
A denúncia da Procuradoria da República foi
aceita, como de praxe em processos penais em qualquer instância, com base em
indícios sérios de crime. Advogados experientes e qualificados ofereceram o
contraditório. Há nos autos confissões, áudios, vídeos, textos e outros
elementos que visam documentar os fatos. O STF vai julgar com independência e
com base nas evidências. Se houver provas, os culpados serão responsabilizados.
Se não houver, serão absolvidos. Assim funciona o Estado democrático de
direito.
Para
quem não viveu uma ditadura ou não a tem na memória, vale relembrar: ali, sim,
havia falta de liberdade, tortura, desaparecimentos forçados, fechamento do
Congresso e perseguição a juízes. No Brasil de hoje, não se persegue ninguém.
Realiza-se a justiça, com base nas provas e respeitado o contraditório.
Como
todos os Poderes, numa sociedade aberta e democrática, o Judiciário está
sujeito a divergências e críticas. Que se manifestam todo o tempo, sem qualquer
grau de repressão.
Ao lado das outras instituições, como o Congresso Nacional e o Poder Executivo, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado com sucesso os três grandes papéis que lhe cabem: assegurar o governo da maioria, preservar o Estado democrático de direito e proteger os direitos fundamentais.
Por fim, cabe registrar que todos os meios
de comunicação, físicos e virtuais, circulam livremente, sem qualquer forma de
censura.
O
STF tem protegido firmemente o direito à livre expressão: entre outras
decisões, declarou inconstitucionais a antiga Lei de Imprensa, editada no
regime militar (ADPF 130), as normas eleitorais que restringiam o humor e as
críticas a agentes políticos durante as eleições (ADI 4.1451), bem como as que proibiam
a divulgação de biografias não autorizadas (ADI 4815). Mais recentemente,
assegurou proteção especial a jornalistas contra tentativas de assédio pela via
judicial (ADI 6792).
Chamado
a decidir casos concretos envolvendo as plataformas digitais, o STF produziu
solução moderada, menos rigorosa que a regulação europeia, preservando a
liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de empresa e os
valores constitucionais.
Escapando dos extremos, demos um dos tratamentos mais avançados do mundo ao tema: conteúdos veiculando crimes em geral devem ser removidos por notificação privada; certos conteúdos envolvendo crimes graves, como pornografia infantil e terrorismo, devem ser evitados pelos próprios algoritmos; e tudo o mais dependerá de ordem judicial, inclusive no caso de crimes contra honra.
É nos momentos difíceis que devemos nos apegar aos valores e princípios que nos unem: soberania, democracia, liberdade e justiça. Como as demais instituições do país, o Judiciário está ao lado dos que trabalham a favor do Brasil e está aqui para defendê-lo.
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