domingo, 14 de setembro de 2025

COMO FICA O PROJETO DA ANISTIA APÓS A CONDENAÇÃO DE BOLSONARO POR TRAMA GOLPISTA? O CERTO QUE CRIME CONTRA DEMOCRACIA NÃO PODE SER PERDOADO.

'Bolsonaro é chefe de quadrilha, não pode ter anistia', (Foto: STF)

Anistiar o golpe é traição à Constituição. Cabe ao Congresso Nacional demonstrar que a democracia e o Estado de Direito constituem compromissos inegociáveis.

condenação histórica de Jair Bolsonaro e de militares pela tentativa de golpe que se iniciou muito antes do 8 de janeiro de 2023 — em meio a um processo continuado de ataques às instituições democráticas e ao princípio da separação dos poderes — marca um divisor de águas. Não se tratou de um evento isolado, mas da culminância de um projeto autoritário que corroía, paulatinamente, as bases do constitucionalismo democrático brasileiro, no que David Landau chamou de Constitucionalismo abusivo ou Kim Scheppele chamou de Democraturas e Legalismo autocrático, em que líderes eleitos passam a destruir a democracia em um processo lento e gradual de deslegitimação dos Poderes eleitos, com estratégias de ataques ao Judiciário, visando avançar seus projetos autoritários. Diante desse cenário, volta ao debate jurídico-político o tema da anistia: quais são seus limites e sua finalidade em sociedades constitucionais que buscam permanecer fiéis ao pacto democrático?

A anistia, como instituto, historicamente buscou a reconciliação após conflitos, inserindo a ideia de esquecimento jurídico em prol da pacificação. Todavia, no mundo contemporâneo, essa finalidade sofre restrições claras: não há espaço legítimo para a anistia de crimes que atentam contra a humanidade ou contra a própria ordem democrática, sob pena de, em vez de pacificar, incentivar o desrespeito à ordem democrática.

A anistia, portanto, está sujeita a limites normativos e éticos que a tornam ilegítima em determinadas situações. O direito internacional consagrou a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade, da tortura e de graves violações de direitos humanos. Nesse contexto, qualquer tentativa de utilizar a anistia como instrumento de esquecimento ou autoproteção política contraria o “sentimento comum de humanidade” e subverte o princípio da justiça. Assim, não é aceitável que governantes ou grupos políticos se valham desse expediente para se eximirem de responsabilidade em atos que atentam contra a ordem democrática e os direitos fundamentais. Ao contrário, para Mathilde Philip-Gay, ainda que se concedesse uma anistia por razões de pacificação nacional, esta nunca poderia ser concedida aos dirigentes políticos, que devem ser sempre responsabilizados tanto por sua ascendência sobre os executores, quanto por  sua posição de agir de forma exemplar.

A noção de autoanistia — quando os próprios agentes responsáveis por graves violações utilizam o poder político para se absolver — é repudiada tanto no plano democrático quanto no jurídico. Não se trata de exercício legítimo da função legislativa, mas de uma fraude contra o Estado de Direito, que subverte a separação de Poderes e paralisa os mecanismos de contenção indispensáveis à democracia. Em contextos de golpe ou de supressão institucional, a autoanistia equivale a permitir que o crime seja legitimado pelo próprio criminoso ou por seus aliados, instaurando um paradoxo jurídico e moral que mina a confiança social na justiça. Nas palavras de Mathilde Philip-Gay: “Lorsque [l’exécutif] s’auto-amnistie, il prive les pouvoirs législatif et souvent judiciaire d’un moyen d’action sur lui-même, tout en conservant des techniques de pression sur ces autres pouvoirs“. Trata-se, portanto, de uma fraude constitucional. Paralisa a contenção a ser exercida pelo Judiciário e converte o instituto da anistia em arma de destruição da própria democracia, em vez de instrumento de pacificação social.

Em síntese, em sociedades democráticas contemporâneas, a memória e a responsabilização são instrumentos fundamentais para a proteção das instituições. Conceder anistia a agentes que buscam abolir o Estado Democrático de Direito significaria fragilizar a democracia diante de seus inimigos internos. A história recente da América Latina mostra que processos de justiça de transição se consolidam não pela impunidade, mas pela combinação entre verdade, memória e responsabilização. Nesse sentido, uma autoanistia para golpistas ou conspiradores contra a ordem constitucional é ilegítima e incompatível com os compromissos assumidos pelo Brasil e pela comunidade internacional na defesa da democracia.

Como advertiu Antônio Augusto Cançado Trindade, a anistia não pode ser convertida em instrumento de impunidade, pois isso viola o direito das vítimas à verdade, à justiça e à reparação. No caso Barrios Altos vs. Peru (2001) afirmou a incompatibilidade entre autoanistias e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirmando que tais leis são destituídas de efeitos jurídicos por violarem normas jus cogens.

Embora a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) não traga de forma literal a expressão “princípio democrático”, esse valor pode e deve ser extraído de forma implícita e sistemática de seus dispositivos. O próprio Preâmbulo afirma que os Estados signatários reafirmam o propósito de consolidar, no continente, a proteção dos direitos humanos “dentro do quadro das instituições democráticas”. Ademais, o artigo 23 garante direitos políticos fundamentais – como votar, ser votado e participar da condução dos assuntos públicos em eleições livres, periódicas e autênticas – que só podem ser compreendidos dentro de um regime democrático.

Já o artigo 29 veda qualquer interpretação da Convenção que exclua “outros direitos e garantias inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo”. Em síntese, a própria CADH reconhece que a democracia representativa é a matriz da proteção de direitos, funcionando como pressuposto de validade para o gozo das liberdades convencionais.

Por sua vez, o artigo 32 estabelece a correlação entre direitos e deveres, afirmando que as liberdades individuais encontram seus limites nas justas exigências do bem comum “numa sociedade democrática”. Esses elementos convergem para uma conclusão inequívoca: o compromisso do Brasil, como Estado-parte da Convenção, inclui também a obrigação de proteger a ordem democrática como condição necessária à realização dos direitos humanos.

No Brasil, a Suprema Corte também consolidou parâmetros sobre os limites do poder de clemência. No julgamento da ADI 5874, o STF afirmou expressamente que o indulto presidencial, embora discricionário, encontra limites constitucionais na moralidade administrativa, na impessoalidade e no respeito à separação de poderes

Mais recentemente, na ADPF 964, que tratou da graça concedida por Jair Bolsonaro a Daniel Silveira, o Tribunal afirmou que a concessão de perdão não pode servir a finalidades espúrias, sob pena de configurar desvio de finalidade e violação da ordem democrática.

Tais precedentes revelam que a Constituição contém um preceito não escrito, mas logicamente decorrente de seus princípios fundamentais: a democracia não pode ser abolida por dentro, nem por meio de artifícios de clemência que sirvam de escudo para criminosos antidemocráticos.

A finalidade legítima da anistia é, portanto, a de preservar a paz social em contextos de ruptura, e não a de blindar agentes que buscam corroer a própria ordem constitucional. Falar em autoanistia para atos de golpe de Estado é inverter o sentido teleológico do instituto: não se trata de reconciliação, mas de autodefesa dos inimigos da democracia. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a jurisprudência do STF convergem nesse ponto: uma autoanistia dessa natureza é ilegítima, inconstitucional e contrária às obrigações convencionais do Brasil.

Mais do que uma opção política, trata-se de uma imposição jurídica fundada na autodefesa constitucional. O Estado Democrático de Direito contém em si uma cláusula implícita de resistência: ele não pode tolerar mecanismos que legitimem sua própria destruição.

Os atos de 8 de janeiro de 2023 – a invasão e depredação do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal – já foram julgados pelo STF, que os reconheceu como crimes graves contra o Estado Democrático de Direito. As sentenças confirmaram tipificações como tentativa de golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L), associação criminosa armada e dano qualificado ao patrimônio público. Esses delitos, previstos pela Lei nº 14.197/2021, foram criados justamente para proteger os pilares institucionais da República, garantindo o funcionamento dos Poderes e a soberania popular. Diferentemente de crimes comuns, tais condutas atingem toda a coletividade e colocam em risco o pacto constitucional, razão pela qual a Constituição de 1988 lhes confere especial proteção: explícita e implícita.

O artigo 5º da Constituição estabelece, em seu inciso XLIV, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Além disso, no inciso XLIII do mesmo artigo, a Constituição determina que a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia crimes como tortura, tráfico de drogas, terrorismo e aqueles definidos como hediondos. Há, portanto, uma clara orientação constitucional de tolerância zero com crimes de elevado potencial lesivo ao tecido social e à própria sobrevivência do Estado Democrático de Direito. Embora os delitos cometidos em 8 de janeiro (como golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito) não estejam nominalmente listados no inciso XLIII – até porque são tipos penais criados posteriormente pela Lei 14.197/21 – sua natureza guarda alguma semelhança com eles, tendo como diferença principal sua maior gravidade, eis que visam destruir o próprio regime democrático. Esses atos podem facilmente ser associados ao conceito de terrorismo em sentido amplo, já que consistiram em violência com motivação política para intimidar autoridades e populações, além de sabotagem violenta de instalações públicas (algo expressamente previsto entre os atos terroristas na Lei 13.260/2016) e planos de assassinato de altas autoridades da República. Em suma, sob a ótica material, os ataques à sede dos Três Poderes e outros planos insurrecionais de 2022/2023 se enquadram no rol de comportamentos que a Constituição e a legislação penal buscam excluir de qualquer benevolência jurídica, seja fiança, seja prescrição ou anistia.

Vale dizer, que ainda que não sejam, os crimes de golpe de estado em questão considerados como crimes expressamente insuscetíveis de anistia, há uma vedação implícita, que pode ser compreendida a partir das cláusulas pétreas da Constituição.

Isto porque a Constituição veda emendas constitucionais tendentes a abolir cláusulas pétreas. O art. 60, §4º, ao elencá-las, impede inclusive que o poder constituinte derivado suprima a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de Poderes e os direitos e garantias individuais. É possível inferir da leitura destes incisos que, o que em verdade protegem, é o próprio Estado Democrático de Direito, que a Constituição de 1988 erigiu como núcleo inviolável. A separação de Poderes é condição para evitar o autoritarismo; o voto direto, secreto, universal e periódico garante eleições livres e a aceitação de seus resultados; os direitos fundamentais asseguram liberdades como expressão, manifestação, associação e crença, sem os quais a democracia não subsiste. O federalismo também reparte competências para garantir uma separação territorial de poderes e a própria democracia.

Neste sentido, ainda que se entenda que o constituinte não tenha explicitado de forma literal a vedação de anistia ao crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, mais correta é a interpretação de que isso é tão elementar que sequer precisaria ser dito. A Constituição de 1988 consagrou um sistema jurídico que se pauta pela integridade, em que a coerência das decisões garante a coerência do sistema como um todo. Conforme Mark Walters, as máximas do Direito não operam isoladamente, mas estabelecem uma relação lógica de complementariedade, compondo uma rede de princípios e regras organizados “do mais amplo e mais genérico, por muitos graus de descida, como num pedigree ou genealogia, ao mais especial e particular”, de forma que todas as partes da estrutura se combinem em harmonia, como se possuíssem uma “consanguinidade ou concordância natural”. Sob essa perspectiva, admitir a possibilidade de uma anistia para crimes contra a própria ordem democrática seria romper a integridade do sistema constitucional, desarticulando sua trama de coerência interna. Afinal, se a Constituição proíbe até mesmo emendas constitucionais — que resultam do mais exigente processo legislativo democrático — de abolir esses valores, não faria sentido admitir que uma lei ordinária pudesse permitir anistia a quem, em total desrespeito ao pacto democrático, buscou destruir violentamente os fundamentos da República.

Isso, sem contar que o já citado inciso XLIV do art. 5º, que estabelece o mandado de criminalização da ação de grupos contra a ordem constitucional é, também, uma cláusula pétrea. Ou seja, o Constituinte originário, ao incluir este mandado de criminalização no artigo 5º, elevou-o ao patamar de intangível, justamente para que tal conduta jamais deixasse de ser criminalizada. Se a Constituição não permite que emenda constitucional extinga o mandado de criminalização da conduta, é certo que não permite, também, a anistia episódica a pessoas que, por meio do devido processo legal, foram reconhecidamente condenadas pela prática destes crimes.

Leitura em contrário não se coaduna com o regime de proteção constitucional. A democracia brasileira está inscrita desde o preâmbulo da Constituição, ao instituir um “Estado Democrático”, e reafirmada no art. 1º, como princípio fundamental, bem como no art. 2º, que consagra a separação de Poderes. Qualquer tentativa de anistiar crimes contra a ordem democrática significa violar não apenas esses dispositivos, mas também o núcleo intangível da Constituição. Nesse mesmo sentido, os direitos políticos (arts. 14 e 17) enquanto direitos fundamentais reforçam que a soberania popular só se exerce em um regime democrático, por meio de eleições periódicas, pluripartidarismo e respeito aos direitos humanos.

No antigo debate da dupla revisão, relevante parte da academia jurídica entendeu pela impossibilidade de emendar o conteúdo do próprio art. 60, §4º, por considerá-la uma cláusula pétrea implícita. Entendeu-se que violaria a própria lógica da existência de cláusulas intangíveis a interpretação a partir da qual o próprio artigo que as estabelecia seria modificável. Embora o tema seja distinto, a lógica se aplica: para além dos limites explícitos já mencionados, há um limite implícito, inerente à própria intangibilidade dos valores do Estado Democrático de Direito, que impede a convalidação ou o perdão de atos, concretos ou abstratos, que visam implodir a própria estrutura que mantém em pé o edifício constitucional.

Nenhuma maioria eventual no Legislativo tem autoridade para transigir com os fundamentos do regime democrático, seja por lei ordinária ou por emenda, já que esses fundamentos estão fora do alcance de mudanças casuísticas.

Diante disso, não há qualquer interpretação possível que legitime uma anistia destinada a isentar de responsabilidade aqueles que atentaram contra o núcleo essencial e intransponível da ordem constitucional brasileira. Uma lei dessa natureza não seria reconciliação, mas sim ruptura: a consagração, por dentro do sistema, daquilo que a Constituição mais se propôs a impedir. Não surpreende que vozes no STF já tenham sinalizado que, caso aprovada, uma anistia dessa espécie seria sustada por inconstitucionalidade.

Às diversas figuras da comunidade jurídica, bem como a outros setores da sociedade que permaneceram insatisfeitos com a declaração de constitucionalidade da Lei da Anistia de 1979, firmada pelo STF na ADPF 153, a recente condenação dos golpistas representa um sopro de esperança. Mais do que isso, constitui uma demonstração de que o Supremo Tribunal Federal tem atuado com vigilância e firmeza na defesa daquilo que integra o núcleo de sua missão institucional.

É certo que parcela da população, como indicam pesquisas do Latinobarômetro, revelou desconfiança crescente em relação à democracia, o que ajuda a explicar o apoio a iniciativas autoritárias e deve de algum modo reagir à decisão do STF. Essa reação social, no entanto, só pode encontrar legitimidade dentro da ordem constitucional. O Supremo Tribunal Federal cumpriu seu papel de guardião da Constituição, afirmando com clareza que não há espaço para retrocessos. Cabe agora ao Congresso Nacional demonstrar, com igual firmeza, que a democracia e o Estado de Direito constituem compromissos inegociáveis da ordem constitucional de 1988.

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