No fim de 2018, quando
perguntado sobre suas expectativas em relação ao governo de Jair Bolsonaro, o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era cauteloso: dizia que era preciso
esperar as ações do líder recém-eleito para avaliar se seus "temores"
se confirmariam.
'Assistimos
ao renascimento da família imperial', critica
FHC
Hoje, há
três meses sob a nova administração, o tucano é mais taxativo. Bolsonaro, diz,
é pior do que ele esperava. Quase cem dias depois da posse, o sociólogo de 87
anos afirma não ter visto "nada" do governo.
"Por
que ele foi eleito? Ele falou temas que sensibilizaram: violência e corrupção,
basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse 'eu vou fazer um
Brasil de tal a qual modo'. Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai
mudar o quê?", diz, em entrevista à BBC News Brasil na
sede do Instituto FHC, no centro de São Paulo.
Bolsonaro
não sabe o que fazer com o país porque não foi eleito com base em um
projeto, diz FHC
Para o
ex-presidente, a nova gestão está sem rumo. As falhas, na sua análise, são
muitas: falta projeto para o país, falta aprender a se relacionar com o
Congresso, falta até se comunicar com a população para explicar medidas
consideradas fundamentais pelo governo, como a reforma da Previdência.
Ele cita a
experiência do Plano Real, quando, como ministro, liderou a articulação em prol
da aprovação da proposta. "Não tinha medo de bicho papão. Fui falar do
Plano Real até no programa Silvio Santos", diz. "Na reforma da
Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase
presidente."
Mesmo o
ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi duas vezes ao Congresso tratar da
reforma da Previdência, esbarra no tom de "professor" ao falar com os
parlamentares, diz FHC.
"Fui
ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com
coisa, né? Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele
dizia 'mas não é meu terreno'. Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da
política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num
processo."
Distante das
atividades do PSDB desde que deixou a Presidência ("nem sei onde fica o
diretório"), mantém contato com alguns de seus pares na sigla. Os mais
frequentes, diz, são o ex-governador Geraldo Alckmin e os senadores Tasso
Jereissati e José Serra. "E o
(governador João) Doria, mais raramente..."
Leia abaixo
os principais trechos da entrevista com o Ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso
BBC News
Brasil - No seu último livro, o senhor fala bastante sobre seu exílio durante a
ditadura, período em que perdeu seu pai, e foi até aposentado compulsoriamente
da USP. Como viu a divulgação do vídeo em defesa do golpe militar pelo
Planalto?
Fernando
Henrique Cardoso - É uma coisa historicamente inconsequente, né? E era também
uma vontade que corresponde a esse tipo de coisa do [Donald] Trump, de
idealizar o passado. Dizer "não foi assim, foi diferente". Quem
passou pela época sabe. Começa pela imprensa.
Olha,
trabalhei num jornal chamado Opinião, da imprensa nanica, como se chamava. Como
é que se fazia? Você escrevia um artigo e às vezes vinha o redator-chefe e
dizia "olha, essa frase não passa". Quantas vezes no jornal não saíam
poesias, que era a maneira de dizer "fui censurado"?
Então você
dizer hoje que não houve ditadura, que não houve um movimento de controle da
liberdade é completamente desassisado. Por que se diz? Porque a política não é
feita por historiadores, é feita por personagens ativos, incentivando o medo.
BBC News
Brasil - O senhor fica mais preocupado quando isso vem institucionalizado,
quando vem do Planalto?
FHC - Sim,
claro que preocupa. Mas se você comparar com o que aconteceu em 1964... Em
1964, havia Guerra Fria. Era uma realidade, não era uma invenção. Havia um
alinhamento político ora para um lado, ora para o outro. Hoje não tem essa
realidade. Mesmo que venha do Planalto, como você vai assentar essas coisas que
o Planalto quer colocar como verdade? No passado, tinha [uma forma], porque de
fato havia briga, havia União Soviética, hoje não tem.
Você vai
dizer o quê? O perigo vem da China? A China está preocupada em vender o que
produz.
BBC News
Brasil - Ao falar sobre as novas versões históricas a respeito do golpe de
1964, o senhor disse que elas são prejudiciais para o futuro do país. Muito se
discute hoje sobre ameaças à democracia brasileira. Vê esse risco?
FHC - Sobre
o Brasil, quando as pessoas dizem o que você acabou de me perguntar, querem
dizer o seguinte: há o perigo de um regime sem liberdade. Sempre há, você tem
que prestar atenção. Mas não acho que possamos comparar com 64 porque em 64
havia um confronto real entre concepções do mundo ancoradas em Estados,
simbolicamente a União Soviética e os Estados Unidos. Você tem diferenças no
mundo hoje, mas não tem mais ideologias ancoradas só num Estado. É mais difuso.
Por outro
lado, no passado, os partidos de esquerda e de direita tinham não só uma
ideologia como se organizavam. Eles queriam representar interesses de classe.
Não há isso no Brasil de hoje. Estive recentemente na Europa e era uma
dificuldade, porque os jornalistas me perguntavam na pressuposição de que isso
existia. E não há.
Quem votou
por A, B ou C no Brasil, não votou numa concepção orgânica, votou numa pessoa
que emitiu sinais que captaram o sentimento.
BBC News
Brasil - O senhor está falando de Bolsonaro?
FHC - É. Ou
de outro qualquer. Quem votou no Bolsonaro, por exemplo. Por que ele foi
eleito? Ele falou de temas que sensibilizaram: violência e corrupção,
basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse "eu vou fazer um
Brasil de tal a qual modo". Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer.
Vai mudar o quê?
BBC News
Brasil - Logo depois que o presidente Bolsonaro foi eleito, o senhor falou que
as ações dele iriam desmentir ou confirmar os temores despertados no senhor na
época. E hoje?
FHC - Meu
temor é o seguinte: não é só sobre o Brasil. Como eu disse, está difícil a
noção de representatividade e democracia. Aqui é meu temor hoje é outro, é a
falta de qualquer coerência.
BBC News
Brasil - No governo?
FHC - No
governo. Não estou com temor de que acabe a liberdade de imprensa. Não tem
força para isso. Claro que vai depender da reação da sociedade, sempre. Não se
pode fechar os olhos e dizer "deixa então". Tem que se opor, porque
se não se opuser, as coisas vão se organizando.
Vamos falar em
coisas concretas. Você tem uma enorme quantidade de militares no governo, em
geral da reserva. Mas não tem um Exército, uma força armada no governo. Não
houve uma tentativa de uma corporação tomar conta e dar um certo rumo. Não é a
mesma coisa. Em 1964, houve uma ocupação com uma ideologia, tinha uma cabeça. O
general Golbery [do Couto e Silva, um dos principais articuladores da ditadura
militar] não era nenhum desinformado, ele tinha uma linha. Aqui não tem, é uma
coisa mais precária.
Não acho que
estejamos na ameaça concreta de uma força organizada tomar conta do poder. O
que não quer dizer que não seja um risco, porque você precisa ter alguém para
apontar um caminho. Com muita confusão, as coisas ficam difíceis, porque o
mundo está avançando.
Qual é a
briga dos Estados Unidos com a China hoje? Não é só comunismo e democracia. É
quem domina melhor a tecnologia, o que faço com ela.
BBC News
Brasil - Em seu último livro, o senhor fala que o Brasil sempre teme perder
oportunidades. Estamos perdendo?
FHC -
Estamos perdendo oportunidades. Num mundo difícil, confuso, você tem que ter
algum objetivo e estratégia. Se nos perdermos no que se chama de
"curto-prazismo", não acontece nada. O que vai ser daqui a dez anos?
Daqui a 20? O que eu quero fazer? Quero mandar o homem para Lua? Eu quero fazer
o quê? [...] Alguma coisa mais concreta para que você possa orientar o
sentimento e o comportamento das pessoas em uma certa direção.
BBC News
Brasil - Mas em relação aos temores que o senhor mencionou, esses três meses
foram melhores ou piores do que tinha imaginado?
FHC - Acho
que piorou no seguinte sentido: não vi nada.
BBC News
Brasil - É pior do que o senhor esperava?
FHC - É.
BBC News
Brasil - O que o senhor esperava?
FHC - Um
caminho. Vamos pegar uma coisa concreta. O setor econômico do governo parece
ter um caminho, posso concordar ou não, mas é um caminho. Só que não vi esse
caminho se transformar numa realidade congressual. E vivemos numa democracia,
não adianta eu saber. Tem que fazer com que os outros estejam de acordo e votem
do meu lado. Não vejo organização no Congresso para isso.
Fui ouvir o
debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa,
né? Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia
"mas não é meu terreno". Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da
política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo.
Só se transforma num processo quando você atua sobre os outros e tem o consentimento,
a adesão dos outros.
Nos outros
setores, [fora o econômico] você não vê nada. Você uma coisa idílica... Escola
Sem Partido. Não tem que ter partido em escola mesmo, não cabe, mas traduzem
isso de uma maneira antiquada. Todo mundo tem ideologia mesmo, de um jeito ou
de outro. Você influencia o aluno queira ou não queira, mas você não pode
organizadamente inculcar uma ideia no aluno. Sou contra isso aí. Mas a ideia do
Escola Sem Partido é outro partido. Então, você vai tirar o evolucionismo e botar
o criacionismo... Tenha paciência.
BBC News
Brasil - O senhor citou recentemente a possibilidade de queda de um presidente
que não entende como se articula o Congresso. O senhor está falando de
Bolsonaro? Vê risco de queda?
FHC - Sempre
existe. Sempre fui, pessoalmente, muito renitente à ideia de impeachment.
Lembro-me do caso do presidente Lula, por causa do mensalão. Quando o tema veio
à baila, eu era contrário. Não porque tivesse dúvida quanto ao mau procedimento
e ao combate do mensalão, mas digo "meu Deus, vamos colocar para fora da
Presidência um homem que foi líder sindical, ganhou as eleições, que tem
enraizamento popular"? Isso deixa uma marca na história.
Na minha
cabeça, naquela época, eu comparava com Getúlio Vargas. Eu era menino no tempo
do Getúlio, quando derrubaram o Getúlio. Vocês não imaginam a tensão que havia
na política brasileira, na vida brasileira, entre Getúlio e anti-Getúlio, nas
famílias, era uma coisa insuportável. Eu disse "bom, vamos repetir isso
aqui?". Historicamente não é bom.
No caso da
Dilma Rousseff, nunca fui fanático pelo impeachment, embora houvesse elementos,
como havia no caso do Lula. Porque você tem que pensar que é uma coisa
complicada. Depois da Constituição de 88, eleitos pelo voto direto foram: o
Collor, que sofreu impeachment. Eu, que consegui (concluir dois mandatos). O
Lula conseguiu, mas está na cadeia. A Dilma sofreu impeachment. E agora o
Bolsonaro.
É uma coisa
complicada do ponto de vista nacional. Por que alguns conseguiram? Eu fiquei
oito anos, na verdade fiquei dez porque no tempo do Itamar eu tinha muito
controle. O Lula ficou mais que oito, porque no tempo da Dilma ele tinha
controle. Por quê? Porque, de maneiras diferentes, tanto eu como o Lula
conhecíamos as forças da sociedade. Se você não entender a diversidade e
necessidade de ter apoio, você perde a força. E quando é o impeachment? Quando
não tem apoio.
BBC News
Brasil - Apoio que se consegue com articulação política.
FHC - É,
articulação. É uma questão em todos os governos, não só no Brasil. Mesmo nas
ditaduras você tem que ter apoio. Pega a ditadura aqui no Brasil, não tinha
apoio? Tinha. Pode não ser o apoio que você deseja, não é voto, mas tem que ter
apoio em alguns grupos da sociedade. Aqui temos um regime democrático, que precisa
de voto, e os parlamentares nesse regime têm peso. E temos tremenda dificuldade
hoje com uma fragmentação partidária sem tamanho; quando você não tem essa
fragmentação é mais fácil discutir o apoio.
Como você
discute apoio? A pior maneira feita aqui foi comprar, com dinheiro, que é
insustentável e corrompe tudo, não só as pessoas como as próprias instituições.
Mas você tem que negociar; você está de acordo? Quem está do meu lado? Se você
estiver de acordo, você vai ser ministro. Mas no Brasil se criou a ideia de que
fazer acordo é crime, corrupção. Aí não tem como governar, só com a ditadura.
Como é que faz: quem ganhou manda?
Sempre disse
isso: tem que ser com base em um programa. Quando não tem programa, e esse
programa não tem apoio da sociedade, o governo fica muito frágil, e o Congresso
derruba.
BBC News
Brasil - O senhor vê esse risco para Bolsonaro, de não terminar o mandato?
FHC - Espero
que não, porque o Brasil precisa de continuidade, precisa que as instituições
se reforcem. Então não torço por esse lado, nem estou vendo que isso possa ocorrer
já. Não gostaria que isso ocorresse, na verdade, por questões históricas. Mas
acho que o governo tem que andar depressa.
Costumo
fazer uma comparação grosseira, do cavalo e o cavaleiro. O Congresso e o
Executivo é a mesma coisa. O Congresso fica te olhando lá: "esse cara não
sabe montar a cavalo, e se não sabe, vou dar um pinote". E de repente dá
um pinote e te tira. Então você tem que estar o tempo todo tentando convencer o
Congresso e o povo de um certo caminho.
Como é que
você convence o Congresso? Tendo apoio popular fica mais fácil, porque o
Congresso pensa na própria eleição. Segunda parte: você tem que compartilhar o
poder e ter objetivos - o que estou propondo, o que vou fazer. Pega uma coisa
essencial para o Brasil, a reforma da Previdência. Por que é essencial? Porque
daqui a pouco o governo vai ter que emitir moeda, volta a inflação.
Já no meu
tempo tentamos fazer [a reforma da Previdência], conseguimos um pouquinho. Cada
um fez um pouquinho. Pouco a pouco, até no momento atual, a população começa a
entender isso.
Para fazer
uma reforma você tem que gastar muita saliva, e explicar muito para a população
o porquê, para ganhar o apoio. Para o Congresso também te apoiar. O caminho
mais fácil é você cooptar o Congresso, seja com cargos, seja com dinheiro. Mas
não é o melhor. O melhor é você ter capacidade política para ganhar a luta na
agenda. O que eu fiz no tempo do Real? Eu falei.
BBC News
Brasil - O senhor disse em entrevistas que, no processo de aprovação do Plano
Real, assumiu o papel de articulador como ministro da Fazenda quando o
presidente Itamar Franco preferiu ficar de fora. Esse é um modelo que poderia
funcionar para a reforma da Previdência? Guedes poderia ser o "FHC"
de Bolsonaro?
FHC - Não do
jeito que ele está pensando. Ele tem que ser político.
Eu era
senador, então eu ia às bancadas todas do Congresso e discutia inclusive com a
oposição, não tinha medo de bicho papão, os enfrentava. E eu falava na
televisão. Vou dar um exemplo: eu fui convidado uma vez para falar sobre o
plano Real no programa Silvio Santos. Cheguei lá no barracão na marginal do rio
Tietê, onde era o estúdio. Silvio estava em uma salinha fazendo maquiagem e me
chamou lá. Ele me dizia: repete. Eu repetia. Ele falava "ih, vai ser um
desastre, não vão entender nada".
Ele acabou a
maquiagem e entramos em um salão do auditório. Ele me disse "olha, minha
audiência tem uma idade mental de 12 anos. Em média". Ele foi lá e deu um
show. Explicou muito melhor e mais apropriadamente do que eu seria capaz, para
o auditório dele, o que era o Plano Real, a URV. Mas fui lá falar com ele. A
questão de obter apoio implica em explicar.
BBC News
Brasil - E no que o senhor vê falhas em Guedes? Ele foi falar no Congresso…
FHC - Sim,
foi lá responder, respondeu bem, como um professor. Não falei como professor,
falei como político. Se você falar como professor é uma coisa: quem entende é
quem está na aula. E quem não está em aula? Não estou dizendo que Guedes não
seja capaz, estou falando que, até agora, não vi ninguém que explicasse dessa
maneira.
Sendo líder,
você tem que traduzir de maneira que as pessoas sintam. Está faltando isso. Não
é propaganda, é a crença de que o líder vai fazer aquilo. Alguém vai ter que
assumir esse papel. Vou dar um exemplo que eu gosto muito, do Lula, no Palácio
da Alvorada, falando sobre poluição.
"[Ele
disse:] a poluição, vocês sabem, vem lá de cima. A Terra é redonda e ela gira.
Se ela fosse plana, a poluição seria um problema deles, porque são eles que
poluem. Mas como ela gira, cai na nossa cabeça; então nós temos que proteger o
meio ambiente". Ele explicou. Fundamento científico zero, mas a maneira de
dizer "atenção, porque isso pega em você também" é assim.
BBC News
Brasil - O governo está gastando saliva nos lugares errados?
FHC - Sou
prudente nessas coisas. Acho que tem que dar um pouco de tempo ao tempo para
ver como o governo vai atuar. O estilo de comunicação que vejo no presidente é
a internet. Não é minha área, não sei dizer se está funcionando, se não está
funcionando.
Mas quando
sai da internet e vai falar, é um estilo mais "o homem comum". Pode
pegar? Pode. Mas precisa falar, repetir, de uma maneira mais fácil, mais
direta. Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum
ministro que seja quase presidente, que a gente saiba que quando ele está
falando, está falando pelo governo. Isso não é só aqui, é no mundo todo onde há
democracia.
BBC News
Brasil - Mas o presidente tem declarado que ele já fez sua parte ao entregar a
proposta ao Congresso. Disse que, por ele, nem seria favorável à reforma.
FHC - Acho
que ele está errado. Isso está errado. É porque ele vem de uma corporação e
todas as corporações ficam com preocupação quando muda a Previdência, eu
entendo. Sou de uma família que tem muitos militares. Você não imagina a
dificuldade que eu tive com a reforma da Previdência, [com] minha irmã, meus
irmãos. [Eles diziam:] 'meu pai contribuía, tenho direito'. E o que eu dizia?
Eu lavo as mãos? Alguém vai ter que botar a mão na massa.
BBC News
Brasil - Como os empresários e o mercado têm percebido o governo nessa
situação?
FHC - Não
tenho tanta familiaridade, mas o que posso dizer é: o mercado e o Congresso têm
uma conversa de surdos. Um não entende o outro e adivinha, aposta. Muitas vezes
o mercado aposta que vai haver tal coisa que é inviável, e o Congresso é
absolutamente insensível ao nervosismo do mercado. Então é por isso que precisa
de alguém que faça pontes, explique.
BBC News
Brasil - Na semana passada, a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro
de "aprendiz de presidente", dizendo que faltava a ele conhecimento
sobre o próprio emprego. O senhor concorda?
FHC - Não
estou lá próximo para saber como ele tem desempenhado. O que vi foi em Davos,
[quando] perdeu uma oportunidade. Agora foi lá para Israel e prometeu que ia
abrir uma embaixada, recuou para abrir um escritório, provavelmente desagradou
aos dois lados. Nos EUA, ele foi muito pró, foi pró demais.
Acredito que
tem que se dar tempo ao tempo. A verdade é que ele esteve por muitos anos no
Congresso. Eu tive escolinha de presidente: porque eu fui líder [durante o
governo] Sarney, depois veio Itamar que era meu colega, vi [a política] mais de
perto. Não é necessário isso, o Lula nunca foi tão perto e aprendeu. A Dilma
não aprendeu. Para você ver que tem alguma coisa que depende do estilo da
pessoa. Mas acho que é cedo para dizermos "é assim". E temos um
ministro do Exterior que quando fala, complica, né... (risos).
BBC News
Brasil - O senhor já declarou que não está vendo oposição ao governo.
FHC - Só de
dentro do próprio governo.
BBC News
Brasil - Durante a eleição, o senhor disse que não apoiaria nem Bolsonaro nem o
PT, por tratarem-se de "dois extremos", e foi criticado por não ter
se posicionado. Só se disse oposição em janeiro.
FHC - Eu
nunca apoiei o Bolsonaro, não era isso. Mas estou em uma situação difícil. O PT
deu com os burros n'água, levou o Brasil a um desastre enorme. As ideias não
mudaram, eu não quero.
Por outro
lado, eu não acreditava também no voluntarismo do Bolsonaro. Mas nunca apoiei.
Não torço contra o Brasil, nunca. Não é que necessariamente vai fazer bobagem,
vamos ver. Tomara que não faça. Se fizer, eu estou contra.
BBC News
Brasil - Mas na sua análise dos primeiros três meses…
FHC - É como
eu disse, não vejo caminho.
BBC News
Brasil - Nesta semana, Paulo Vieira de Souza, acusado pelo MPF de ser operador
de políticos do PSDB de São Paulo, assumiu ter quatro contas na Suíça. O senhor
acha que o PSDB pode voltar a se diferenciar dos outros partidos em termos de
ética?
FHC - Vamos
ver, eu leio toda hora "o Paulo Preto é operador do PSDB". Não é
verdade. Quem é o tesoureiro do PSDB? Não sei, não é uma figura importante, nem
o Paulo Preto jamais foi ligado a um tesoureiro do PSDB. Pode ter sido usado
por pessoas do PSDB, o que é diferente de constituir o elo entre a corrupção e
o partido.
Agora, houve
casos que comprometem o partido, a crítica recai, todo o sistema foi alcançado
por essas críticas. Qual vai ser o futuro dos partidos? Ou se renovam
efetivamente e têm lideranças que expressam essa renovação ou vão continuar o
que são: máquinas de fazer voto.
BBC News
Brasil - O senhor já disse que não gosta de ver o presidente Lula preso.
FHC - Nem
ele, nem nenhum.
BBC News
Brasil - Agora vai fazer um ano da prisão dele. Como vê esse processo?
FHC - Uma
coisa é o sentimento pessoal: não gosto de ver pessoas que eu conheço na
cadeia. Mas, no Brasil, as regras existem. Está preso porque foi condenado em
segunda instância. Antigamente pela Constituição diziam que você só poderia ser
preso quando o processo transitasse em julgado.
O Supremo
Tribunal voltou [com] uma interpretação que já existia e diz o seguinte:
[trânsito] em julgado quer dizer o quê? Quando você vai em segunda instância e
é a última na qual se apresentam provas sobre o fato. A partir daí, a
interpretação é jurídica.
Então pode
prender, e depois apela da cadeia em questões jurídicas. O Lula está preso de
acordo com essas regras. Não posso ser contra as regras, seria contra a
democracia. Ele não está preso arbitrariamente.
Houve um
arbítrio agora, houve. Quando prenderam o presidente Temer, arbitrariamente,
porque não havia, a meu ver, a necessidade de daquele espetáculo.
BBC News
Brasil - A bandeira Lula Livre, que a esquerda defende, é uma arbitrariedade na
opinião do senhor?
FHC - É uma
bandeira, né, de luta política. Acho que a partir de certa idade, digamos, de
70, 75 anos, fica preso em casa. Mas aí tem que ser uma regra, não é para A, B
ou C, não é porque foi presidente, é porque tem a idade.
BBC News
Brasil - Há uma crítica em relação à Lava Jato, da espetacularização das
prisões.
FHC - No
caso do Lula, ele foi condenado. Vou dar um exemplo de um que é do meu partido.
Eduardo Azeredo, foi governador de Minas Gerais. Foi condenado a 21 anos de
cadeia. O que o Eduardo Azeredo fez? Houve um alguém, um ex-ministro do Lula
(Walfrido Mares Guia) e um presidente de uma importante federação empresarial
(Clésio Andrade) fizeram um contrato com o governo dele para usar o dinheiro na
campanha dele. Está errado. Preso está ele, não estão os outros. Está injusto.
Mas ele está
preso porque foi condenado, não posso sair por aí [dizendo] "libere
ele". É um momento triste do Brasil. Necessário, porque a corrupção
contaminou tudo, os partidos, as lideranças, a máquina pública, as empresas.
Necessário. Tem abuso? Pode ter, mas qualquer [abuso] tem que ser coibido.
Fonte: BBC News BrasilBBC News Brasil -
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Redação/Blog
Edmilson Moura.